Nas últimas semanas, loot boxes voltaram a roubar os holofotes (inter)nacionais com estudos e processos que prometem afetar a indústria de jogos e, por consequência, abalar também os jogadores. Nesta publicação te explicamos como estes “inocentes” baús premiados movimentam o mercado e por que este modelo de apostas provavelmente continuará a existir.
O que são loot boxes?
Loot boxes são caixas virtuais com itens diversos que você adquire pela própria moeda de um jogo ou investindo dinheiro real. Estes itens geralmente são cosméticos (roupas, pinturas e texturas) ou podem ser mais práticos, afetando sua experiência do game de maneira direta. O termo em inglês loot tem geralmente sua tradução dentro de jogos como “saque”, por falta de equivalência mais fiel ao que seriam os bens virtuais de um game rentável. Elas estão presentes em títulos de basicamente todos os gêneros, de RPG à corrida, mas grande parte do que mais “seduz” aqueles que adquirem as caixas é o fator social de jogos multiplayer. Um personagem pode fazer uma dança brincalhona ou matar seus inimigos com uma arma brilhante e, dentro do game, isso é nada menos que um símbolo de status.
Modelos de transação (que só te enganam)
Em rápida recapitulação sobre a monetização de jogos em si, grande parte da responsabilidade dos lucros está nos conteúdos adicionais ao game principal. Mapas, personagens, trajes ou missões extras podem ser adquiridas por um certo valor, compradas pela mesma loja que te vendeu o jogo. Antes tínhamos a mídia física para PC e, na última década, vimos o crescimento das lojas virtuais. Fora isso, nada mudou. O próprio The Sims é um exemplo de como um jogo single player pode render tanto, por tanto tempo. Caso você queira adquirir todos os pacotes adicionais lançados para o último da franquia, The Sims 4 (de 2014), é necessário desembolsar nada menos que R$ 3.100. As expansões de hoje também custam o equivalente ao próprio jogo principal, mesmo que sejam menos trabalhosas ao estúdio desenvolvedor do que criar e divulgar um game completo. Avançando na linha do tempo, vemos o crescimento dos chamados “DLCs” (conteúdos baixáveis, em tradução livre) na geração do PlayStation 3 e Xbox 360. A conexão com internet e lojas virtuais das fabricantes dos consoles facilitaram e popularizaram o sistema. Outra que logo surgiu foi a de “passes de temporada”, onde uma assinatura opcional desbloqueia itens a longo prazo, geralmente após certas metas cumpridas (como nível de experiência ou progresso no multiplayer), da forma que vemos nos jogos da franquia Call of Duty. Do lado dos PCs, temos o modelo de assinaturas de jogo, como em World of Warcraft. Por mês, você pode chegar a gastar R$ 32. Há ainda opções com “valores de tempo de jogo não-recorrente”, onde o jogo te custará uma média similar, de 1 real por dia de tempo dentro do game. Então você basicamente não precisa investir R$100 ou R$200 em um jogo para aproveitar quando quiser, mas deve assiná-lo caso queira jogar. Chegando então às loot boxes temos outro tipo de gastos dentro do game: as microtransações. Com dinheiro real, geralmente um investimento pequeno, você consegue objetos que mudam sua aparência (como dissemos, os “cosméticos”) e isso reflete diretamente na sua percepção do personagem e daquele universo. Caso seja um jogo multiplayer, a história só piora. Com isso, começamos a pincelar o impacto psicológico de gastos adicionais em prol de melhor aceitação social. Por fim, é inegável que o investimento de dinheiro real para itens cosméticos funciona melhor naqueles onde a personalização do personagem está intrínseca à jogabilidade, como em Fortnite, porém, certos jogos alinham os gastos a itens que impactam em sua performance. Aí surge a classificação de “pay to win“, onde você literalmente “paga para ganhar” partidas com mais facilidade.
Jogos que “dependem” de loot boxes
Diretamente relacionado aos últimos sistemas citados, vemos as loot boxes, que aplicam microtransações, cosméticos e a lógica do pay to win para lucrar em uma mecânica de apostas. Uma afirmação comum dentre a comunidade gamer é que ninguém menos que FIFA 09 (de 2008) foi o primeiro jogo a aplicar e popularizar as loot boxes como conhecemos, com o modo Ultimate Team. Bastava abrir um pacote de “cartas” com jogadores, esperar pela vinda dos melhores e apostar novamente. Quanto melhores os itens adquiridos, mais fácil era de ganhar, e isso logo ficou claro para a desenvolvedora EA. Em pouco tempo, outros jogos de esporte abraçaram esta lógica. Com isso, as mesmas desenvolvedoras dos esportivos arrumaram maneiras de adaptar a prática a outros gêneros e, logo, os jogos de tiro em primeira pessoa aproveitavam do sucesso: Tom Clancy’s Rainbow Six Siege, Battlefield 1, Apex Legends e Overwatch foram alguns deles. Counter-Strike: Global Offensive, o popular CS:GO, merece atenção redobrada por ser mais delicado que a situação de outros similares. Nele, você tem uma caixa e uma chave para abri-la, mas por trás disso ainda há um absurdo mercado da Valve (empresa responsável pelo launcher/loja da Steam), onde o comércio de skins de armas é a “chave” do sucesso. As caixas do CS são adquiridas ao longo de um certo número de partidas jogadas, contendo categorias específicas e itens com raridades diferentes. De forma direta, isso te obriga a jogar caso queira mais caixas, além de precisar pagar pelas respectivas chaves. Para uma referência básica, em um dos cálculos possíveis para a melhor condição da arma, há uma probabilidade de 0,25575% de você obter a melhor categoria de uma skin. Por sinal, uma chave para cada caixa, vendida no mercado da Valve, hoje custa cerca de R$ 28. Jogos mobile são uma “categoria” que não se salvam disso, pois reina o modelo freemium, onde você baixa games como Genshin Impact sem custo adicional e tem forte incentivo de pagar pela chance de obter personagens especiais. O problema é que você tem missões específicas que basicamente te obrigam a precisar de tal classe de personagem para poder avançar na história – isso se você não optar por seguir fora das main quests. Ou seja, sem gastar dinheiro com loot boxes, é praticamente impossível continuar o jogo de forma natural. Por conta disso, quando aposta e investimento extra do jogador se tornam parte da essência de um jogo, convenhamos: algo não está certo.
Estudos comprovam: é jogo de azar
Uma instituição de caridade chamada GambleWare (trocadilho em inglês entre as palavras “aposta” e “consciente”) fez uma parceria com as universidades de Plymouth e Wolverhampton, ambas cidades inglesas, para realizar a pesquisa Lifting the Lid on Loot-Boxes. Em tradução livre, que também serve como explicação à proposta do estudo, temos uma forma de “levantar a tampa” das loot boxes e desvendar seus efeitos em jovens e adultos. O documento de mais de 50 páginas expressa como funciona o sistema de apostas e como as loot boxes são “estrutural e psicologicamente semelhantes aos jogos de azar“. A análise demonstrou forte relação entre o engajamento com loot boxes e o problema do vício, reafirmado e comprovado por uma dúzia de estudos (12 a cada 13 confirmam que há relação direta). Foram extraídas amostras e tiradas conclusões que, em resumo, mostram que há poucos apostadores, mas estes são viciados e responsáveis pelo lucro. Todo tipo de loot box criada pelos jogos tem um design visual e sonoro com o objetivo de tornar a experiência de abri-las um ato prazeroso (e viciante). A revelação de cada item pode inclusive ser obrigatoriamente de controle do jogador, que deve clicar em cada um dos itens para revelá-los. A forma mais popular desta revelação é em cartas, um item palpável para o gamer, de maneira irônica se aproximando também de cassinos e jogos de azar mais tradicionais. Ao mesmo tempo, quando empresas são apresentadas com a sugestão dos danos causados por loot boxes, a resposta costuma ser uma: na verdade, elas são caixas contendo “surpresas”, sendo “divertidas” e “inofensivas”. Do outro lado da história, temos o efeito fomo (fear of missing out, traduzido como “medo de ficar de fora”) quando são aplicadas promoções limitadas e itens sazonais. Quando dados são colocados em discussão, temos algo surreal: apenas 5% dos gamers são responsáveis pelo maior lucro, gastando mais de R$ 560 por mês somente com loot boxes – não necessariamente este jogador atingiu a maioridade e não necessariamente ele tem controle sobre o próprio dinheiro. Irresponsabilidade financeira ou ignorância a respeito do problema contam (e muito) para o sucesso das caixas. Um comitê inglês reforça que o problema está no encorajamento direcionado às crianças, pois cerca de 55 mil viciados em apostas tem entre 11 e 16 anos, com apostas em e-sports agindo como um agravante. Quatro irmãos, com um Nintendo Switch em mãos, gastaram um total de 4 mil reais em menos de três semanas, em gradativas aquisições de 200 reais com loot boxes. Os mais velhos não saem ilesos: um rapaz de 22 anos com paralisia cerebral e outros “problemas cognitivos“, como colocado pela própria mãe, levou duas semanas para gastar mais de 3 mil libras (cerca de 23 mil reais) com um game mobile. Outro, de 21 anos, gastou as economias dos pais em uma média de 3 mil reais por noite com pacotes do FIFA. Uma das soluções apresentadas no estudo para manter loot boxes seria a total transparência pelos responsáveis (empresa que cria/distribui o jogo), com exemplo da adição de citar “loot boxes inclusas” no selo do sistema de classificação junto à idade recomendada. Mais uma maneira de esclarecer dúvidas sobre a aposta seria um aviso sobre o custo médio para obtenção dos itens desejados pelo apostador, ou um limitador de gastos no jogo.
Como o Brasil se posiciona nessa história?
A associação mais óbvia que um brasileiro faz quando o assunto “aposta” está em jogo é com a loteria. A Loteria Federal da Caixa Econômica, a única realmente legalizada na visão do governo, é a maior do país – e muitas vezes vira sinônimo de “loteria” ao redor do país. Porém, há mais de 80 anos temos a tal Lei 3.688 que menciona e penaliza as classificações de jogos de azar. Em menção direta ao decreto: Logo, era de se esperar que, eventualmente, o peso caísse sobre a nova “modalidade” das apostas camufladas de loot boxes. Pois bem: em 29 de março deste ano, o Ministério Público abriu um processo a pedido da Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente (ANCED), que menciona diversas empresas responsáveis. Dentre elas temos Activision, Electronic Arts, Garena, Nintendo, Riot Games, Ubisoft, Konami, Valve, Tencent e as plataformas Apple, Microsoft, Sony e Google, estas que agem como intermediárias na aquisição/relação de lucros dos jogos. Um dos mais delicados, cujo público-alvo acaba sendo justamente as crianças e adolescentes, é o Free Fire, game mobile com mais de 80 milhões de downloads na Google Play Store e que também faz sucesso dentre a comunidade de transmissões ao vivo – pois o jogo tem 8 milhões de seguidores na Twitch e dezenas de milhares de views todos os dias. Presentes na abertura do processo citam que houve pedido para pena diária de R$ 4 milhões, a indenização de R$ 1,5 bilhão contra a companhia e uma “indenização moral individual de R$ 1 mil para cada usuário; criança ou adolescente de seus jogos“. Mesmo que os valores estejam completamente fora da realidade, antecipando a decisão do Poder Judiciário, o ponto mais importante do processo foi o reconhecimento do MP sobre jogos de azar serem uma realidade das crianças brasileiras.
O que esperar do futuro da indústria de jogos (e do mundo)?
É claro que o Brasil não é o primeiro (e nem o único) país a associar formalmente loot boxes a jogos de azar, pois na Europa temos ótimos exemplos de onde isso deu certo. Holanda e Bélgica, que possuem uma legislação anti-apostas, determinaram que as caixas estão inclusas nisso. Por outro lado, a Comissão de Apostas britânica “passou pano” e disse que elas só contam como aposta quando possuem a opção cash out (onde jogadores podem tirar o dinheiro apostado antes da conclusão do ato). Infelizmente, loot boxes estão intrínsecas à existência de centenas de jogos populares da atualidade. Estes também calham de compor as franquias mais rentáveis que, por consequência, guiam uma das maiores indústrias culturais da atualidade – mais de R$ 1 trilhão somente em 2020, o dobro do que o cinema rendeu. Por isso, a integridade do jogo muitas vezes precisa ser alterada caso um jogo decida parar de monetizar a sorte dos jogadores. Do lado “positivo”, alguns jogos mudaram a lógica de aplicação das loot boxes dada a recepção negativa. Sem sombra de dúvidas, o mais brutal foi Star Wars Battlefront II, que apresentou um sistema de cartas de habilidades para regeneração de vida, aumento de dano das armas e, em geral, benefícios ao modo multiplayer. Era possível conseguir os pontos para desbloqueio das caixas, porém, pagar pelas mesmas era um atalho infinitamente mais rápido. Aqueles que compraram o jogo e queriam se divertir se manifestaram. Com um redesign completo às mecânicas de progresso, o jogo demorou poucas semanas após o lançamento para banir loot boxes, alguns meses para tornar tudo mais justo e mantém uma base de jogadores em crescimento há mais de 3 anos. Parafraseando a própria nota dos desenvolvedores reconhecendo os erros, “não existe mais uma loteria onde você deve adquirir Caixas“. Ou seja, a mesma empresa responsável por popularizar loot boxes em FIFA foi a mesma a comparar o modelo a uma “loteria”. Nos países onde há proibição de apostas em loot boxes, é irônico elas ainda existirem dentro dos jogos. A única diferença é que você não tem nenhuma forma de gastar dinheiro real para comprá-las (e nem a moeda do jogo, paga com dinheiro real), existindo somente as loot boxes 100% gratuitas. CS:GO é um dos que menos tem chances de eliminar as loot boxes, pois a cada venda feita das armas, a Valve pega até 20% do valor. A realidade é que muitos jogos evoluíram para mudanças, facilitando a aquisição ou removendo microtransações. Call of Duty, uma das franquias que mais dependia de loot boxes, abandonou a ideia de aplicá-las na fórmula do jogo um pouco antes do lançamento de Modern Warfare, de 2019. O que estes jogos mantém é a mudança do sistema mais rentável, com a popularização do passe de batalha. Fortnite popularizou esta espécie de “assinatura” de desbloqueio de itens com base no seu progresso e outras dezenas de jogos abocanharam a ideia. Rocket League manteve as loot boxes (agora só com cosméticos, gratuitas) e monetizou o jogo por meio do passe de batalha, por exemplo. Dead by Daylight, Warface e Destiny 2 também resolveram seguir por este caminho. Em suma, com dezenas de provas atuais, provavelmente o que teremos a longo prazo na indústria é a troca (e camuflagem) das apostas em videogames e não a eliminação da prática. Loot boxes gratuitas permanecerão e algumas devem seguir a lógica de serem adquiridas com moedas in-game sem investimento de dinheiro real. O investimento, portanto, não será mais em reais ou dólares, mas o investimento emocional ainda continuará a tirar proveito e seduzir adultos desavisados – ou pior, crianças. FONTES: Pesquisa Lifting the Lid on Loot-Boxes, Eurogamer, Lei nacional, gameindustry.biz (1) (2), eSports Observer, parentzone.org, BBC News (1) (2) (3) (4), Gamble Aware, The Enemy, NME, Engadget, Valve, BetterMarketing, GameSpot, EA/Battlefront II