O diretor do filme, o chileno Pablo Larraín, não é conhecido por fazer biografias familiares. Suas representações da vida de Jackie Kennedy após o assassinato de John F. Kennedy em Jackie, e do poeta Pablo Neruda fugindo do novo presidente chileno Gabriel González Videla em Neruda, são filmes crus e fortes que focam num momento específico da vida de seus súditos. E essa sua característica está bastante presente em Spencer. Spencer de Larraín não conta a esperada história da Princesa Diana. Não há namoro ou casamento de contos de fadas, como retratado em outras séries ou documentários. Não mapeia sua vida de ser uma recém-nascida destinada a maiores alturas. Nem a considera uma vítima previsivelmente condenada. Em vez disso, o longa se passa durante um fim de semana de Natal em 1991, na propriedade Queen’s Sandringham. Diana (Kristen Stewart) ainda está em um casamento tenso com o Príncipe Charles (um frio Jack Farthing), ou pelo menos parcialmente. Durante sua estada, Diana enfrenta seu papel de mãe para seus dois filhos, William (Jack Nielen) e Harry (Freddie Spry), e também seu distúrbio alimentar, a história de sua família e os homens dominadores que guiam sua vida diária.
O enredo de Spencer
Os portões se abrem e o exército chega, com carros e mais carros entrando no terreno luxuoso — evitando por pouco a carcaça de um faisão. Os homens marcham para dentro da casa senhorial, carregando caixas e jogando-as nas bancadas da cozinha industrial. A data pisca: véspera de Natal. A cena severa então corta para um conversível, acelerando ao longo de uma estrada larga e aberta. A mulher nele luta com um mapa, olhando ao redor das infinitas fazendas ondulantes. “Onde diabos estou?” ela pergunta. As primeiras cenas de Spencer mostram imediatamente o contraste entre a rígida e regida família real, e a selvagem, irrestrita Diana, que está lutando com seu papel como parte da realeza. Apesar de ser repetidamente dito no filme que o Natal é “apenas um pouco divertido” por conselheiros e membros da realeza, os três dias que Diana passou em Sandringham em 1991 parecem ser tudo menos isso. O Natal com a família real é uma operação militar, com todos os aspectos do período festivo planejados nos mínimos detalhes: os horários em que devem chegar, as roupas que devem vestir — até mesmo o quanto pesam é registrado como parte das ‘brincadeiras’/ ‘tradições’ que Diana é forçada a obedecer. Com essas regras rígidas em vigor, não é de se admirar que a visão de Kristen Stewart da Princesa Diana se torne cada vez mais selvagem. A Diana de Stewart não é tão cativante quanto a jovem Shy Di de Emma Corrin, que absorveu todos os maneirismos e afeições durante sua gestão em The Crown. A visão de Stewart sobre a Princesa de Gales é como a de um gato selvagem, que ataca quando encurralado. Com a tensão palpável entre ela e o resto da família, Diana encontra-se cada vez mais desesperada para escapar do ambiente sufocante. Comparando sua situação com a de Ana Bolena, ela começa a se imaginar como a rainha Tudor e tenta escapar para seu antigo lar de infância. Enquanto o público assiste ao comportamento mais errático de Diana com preocupação, seu desespero é rejeitado por pessoas próximas à realeza como se ela estivesse “tendo um colapso”. O roteiro de Stephen Knight não bate na cabeça dos telespectadores com os mitos de princesas construídas pela mídia. Knight e Larraín são muito espertos para usar ferramentas tão fáceis. Em vez disso, eles encontram maneiras mais sutis de tecer sua lenda em uma narrativa realista. Knight não fornece um retrato simpático ou mesmo remotamente simpático da família real — a rainha é uma figura fria, quase glacial, mostrando mais calor e afeição por seu exército de corgis do que por sua própria nora. O arrogante Príncipe Charles, um retrato zombeteiro do vilão de Poldark Jack Farthing, é igualmente odioso: com sua afeição claramente em outro lugar, ele é frio e insensível com sua esposa, zombando de sua bulimia como se fosse mais uma “falha” do personagem, o que é mais prova de que Diana é inadequada para os deveres reais. Este é um filme biográfico extremamente preocupado em analisar a psicologia de Diana e, especificamente, seus muitos demônios, mas não de uma forma lasciva. Enquanto se dirigia para Sandringham Estate, ela vê um espantalho parado no meio de um campo, vestindo o casaco vermelho de seu pai. (Na vida real, seu pai, John Spencer, morreu três meses depois daquele Natal, de ataque cardíaco.) Ela vai buscar a roupa exterior, na esperança de limpá-la. Diana cresceu na propriedade da rainha em Park House, fazendo de sua jornada para as festividades de Natal um reconfortante retorno para casa, ainda que acompanhada de um dever infeliz, que causa uma fonte de tristeza que a afetou de várias maneiras. Quem pode culpar Diana por se sentir presa? Além de sua alfaiate e melhor amiga Maggie (Sally Hawkins), e do simpático chef Darren (Sean Harris), ela está bastante isolada. Mas, mais uma vez, Larraín é muito inteligente para limitar Spencer ao aprimoramento do relacionamento de Diana com os outros membros da realeza ao seu redor, ou mesmo seu relacionamento com Charles e sua amante, Camilla Parker Bowles. Em vez disso, ele puxa o foco ao descrever como Diana está tentando proteger seus filhos das tradições arcaicas e fechadas da realeza. Mas, diante de homens dominadores como Charles e o major Gregory, com o protocolo inflexível da propriedade e seu distúrbio alimentar, ela mal consegue se proteger. A mania que ela sente torna seu feriado de Natal mais uma luta pela sobrevivência do que uma fuga.
A entrega de Kristen Stewart ao viver Lady Di
O desempenho absolutamente notável de Stewart é o que reúne a tradição de Diana e a concepção de Larraín sobre ela, criando uma versão mais concreta da princesa que não depende de instintos amplos ou vistosos. Stewart se dobra em seu corpo para atualizar o nervosismo de Diana, inclina a cabeça de uma forma familiar e consegue a voz da princesa perfeita. Além disso, seu desempenho se resume aos olhos. Os olhos de Stewart balançam como canivetes pela grama. E cada olhar traz outra vítima, exibindo uma espécie de desamparo ou timidez, dependendo da situação. São seus olhos que a tiram da linha de atuação e a jogam numa aura totalmente vívida. A única ressalva para esse filme vai para aqueles que já tiveram problemas com alimentação. Principalmente com bulimia, já que é bem escancarado esse distúrbio. A comida pontua o filme, com o excesso e a indulgência dos múltiplos banquetes decadentes da família real durante o período de Natal em plena exibição. O ato de comer é retratado como visceral e animalesco. Diana avidamente sorvendo sopa, mastigando e engasgando com seu colar de pérolas antes de purgar imediatamente — nós a vemos forçar fisicamente os dedos na garganta antes de vomitar no vaso sanitário. Mas, por mais que o filme mostre uma imagem bastante sombria do estado mental de Diana, Spencer se esforça para mostrar seu lado afetuoso e atencioso. As cenas que Stewart compartilha com Jack Nielen e Freddie Spry, que interpretam os príncipes William e Harry, respectivamente, atuam como contraponto às atitudes glaciais da família real em relação a ela — ela esconde os presentes secretos dos meninos (que eles podem abrir no natal em vez da véspera de Natal, como dita o decreto real) e joga com eles longe de olhares curiosos e julgadores. As palavras finais da confidente Maggie (maravilhosamente interpretada por Sally Hawkins) para a princesa ressoam em nossos ouvidos quando Diana encontra a força interior de que precisava para deixar o regime real para trás: “Tudo o que você precisa é amor, choques e risos.” Considerando a tristeza do filme e o quão profundo ele desce para o desespero, o rápido desfecho para a folia deve parecer piegas, quase como se Larraín estivesse trapaceando contra a história. Mas funciona, porque o diretor sabe que o público tem um desejo inerente de que Diana tenha um final feliz. Confira também: Duna excelente e épico, é o ‘Senhor dos Anéis’ da nova geração