Zeitgeist é uma palavra alemã que resume brevemente muitos significados: o espírito da época, o espírito do tempo ou, para os mais ousados, o sinal dos tempos. É um termômetro cultural e intelectual. Pouquíssimas obras ou artistas puderam gozar do benefício de tornar-se um parâmetro de seu próprio tempo. E ainda é mais dificil determinar quais obras conseguem capturar a essência de uma geração quando se está inserida nela. Não é o caso de Black Mirror. A série britânica não apenas conseguir encapsular um mundo que ainda é pouco compreendido, como elevar as expectativas de uma indústria inteira. E ensiná-la como deve ser feito. E com Bandersnatch, o primeiro longa da franquia, o mote da série foi elevado ao cubo.
Bandersnatch: o longa
Desde seu piloto, Charlie Brooker tem uma ânsia em retratar o pior da tecnologia e o pior do ser humano em paralelos com consequências desastrosas. As narrativas sombrias são constantes lembretes de que a sociedade caminha por tenuosas trilhas cujos fins são escuros. E a tecnologia tornam-se as ferramentas necessárias para este fim. Suas tramas são tão efetivas que, tudo o que resta ao final de cada episódio é um nó na garganta, estomago embrulhado e medo: o medo do próprio futuro, medo do seu próximo e medo de si mesmo. E este medo coletivo tornou-se em fenômeno cultural. E a série, que antes gozava da exclusividade de um nicho, ao ser adquirida pela plataforma de streaming Netflix, ganhou uma injeção de moral tamanha que hoje é um dos carros-chefe da empresa. A dominação mundial começou, um passo de cada vez. Para consolidar a franquia de vez, a Netflix decidiu ousar: ao invés dos familiares episódios ao final do ano (seis, depois que a plataforma americana adquiriu os direitos da série), o serviço de streaming optou por uma única história, uma única narrativa, cheia de ramificações e interatividade. Desta vez é você, telespectador, que vai determinar o final do protagonista, Stefan Butler (Fionn Whitehead), um jovem programador de 19 anos trágico, digno das tragédias gregas, com um quê de complexo de Édipo em uma empreitada que está consumindo-o física e psicologicamente: uma adaptação em videogame de um livro conspiracionista e interativo chamado Bandersnatch.
Múltiplos finais, ou melhor, cinco
Diferentemente de todos os outros episódios desta antologia, a proposta do longa é atribuir ao próprio telespectador o peso de suas escolhas. Desta vez, não testemunhamos, cúmplices, os efeitos apocalípticos da tecnologia nos personagens. Pelo contrário, somos nós esta tal advento. Ambientado em 1984, nós somos o futuro distante e nos é permitido sermos uma entidade na própria trama. Isso nos torna vilões da história de Stefan e são nossas escolhas, sejam elas acertadas ou não, que fazem com que o personagem siga em frente. Em direção a sua própria ruína. Em determinado momento, a trama assume ares de Show de Truman, onde tudo é subvertido de tal maneira de que o personagem está ciente de que está sendo controlado e você, como este Deus Ex Machina sem escrúpulos, percebe de que suas decisões não são tão livres assim. Evitar de que você esteja ignorante da minutagem (não é possível ver em qual parte do longa você se encontra) é uma sacada de gênio: você também não tem controle do destino e, por fim, percebe que não haverá final feliz para seu protagonista, infelizmente. Mesmo que você tente a todo o custo. E tentamos. Há, claro, momentos divertidos, quando, em determinado momento, você, forçosamente, é obrigado a revelar sua própria identidade. Ao admitir sua relação com a plataforma, é um bom humorado momento brechtiano, onde há a quebra da quarta parede e o personagem se percebe na gravação de um longa. Em outros, você encontra seu mentor novamente, Colin (Will Poulter). Em outras possibilidades, ele desaparece. Mas, não queremos ser pessimistas, mas é invevitável: o Bandersnatch não vai conseguir evitar de tornar-se um fracasso, por um motivo ou outro.
E o fim é o mesmo
Separamos os possíveis finais e deixamos claro que, ao tentar evitar ao máximo a tragédia, suas escolhas vão tornar a sua experiência mais longa e, em consequência, mais completa. Claro que há ainda muito a desbravar, considerando que existe mais de dez horas de conteúdo inédito e, cada assistida revelará mais um detalhe deste grande quebra-cabeça. Mas todos os caminhos culminam nos seguintes finais: 1) Matar o seu pai e: a) esquartejá-lo e b) enterrá-lo. Nestes dois finais você é preso e o jogo é lançado de qualquer jeito, fazendo mais sucesso devido ao histórico de seu criador. Há variações em que há a interferência direta de Colin, no qual você também pode também: a) assassiná-lo ou b) permitir que ele viva. Nestas duas possibilidades, a empresa acaba falindo. Há duas opções em que você pode pode: 1) lutar com a psicóloga e o seu pai te arrasta para fora do consultório ou 2) você tentar fugir pulando pela janela e perceber que o mundo é fictício e todos são atores. E, por fim, há a opção de acompanhar a sua mãe em sua viagem de trem e morrer no processo. Você morre naturalmente no escritória da psicóloga com esta opção. Há também um final em que o jogo é um sucesso, mas devido ao assassinato, os jogos são recolhidos das prateleiras e, em nosso presente, a filha de Colin decide dar andamento ao projeto, repetindo certos comportamentos de Stefan, como o ímpeto de destruir o computador.
Algoritmo
Há muito neste longa que remete aos tempos iniciais de Black Mirror, que também faz uma série de referências a outros episódios da antologia, como San Junipero (o hospital em que fica o escritório da psicóloga) ou o símbolo pelo qual Stefan fica obcecado (White Bear). Mas, verdade seja dita, há muito que o longa pode oferecer à plataforma além de popularidade. Isso porque o serviço de streaming admitiu ter desenvolvido um algoritmo próprio que permitiu aos criadores pensarem em inúmeras possibilidades narrativas sem se perderem no processo. Isso fica evidente com o andamento da trama, inclusive. Mesmo que você faça as escolhas, ainda existe uma sombra de marionetista e as suas cordas nos conduzem por toda a experiência. E toda aquele mito sobre o algoritmo do Netflix que permite que a plataforma melhore o conteúdo de acordo com o público ganha mais uma novidade: nossas escolhas quando interagimos com o conteúdo permite que a empresa identifique nossos gostos como consumidor. Existe algo mais Black Mirror do que isso? O longa já está disponível no Netflix.