Desde as primeiras semanas do ano, Coringa venceu diversos prêmios, que vão desde o Globo de Ouro pela atuação de Joaquin ao Grammy pela trilha sonora, composta por Hildur Guðnadóttir. Como todos sabem que prêmios do tipo são uma das formas de imortalizar uma produção audiovisual, o Oscar (que acontece neste domingo) também têm o filme indicado em suas principais categorias. No começo do mês passado também tivemos o lançamento do filme em mídia física e digital, onde pudemos conferir em detalhes os bastidores da obra mais aclamada dos últimos tempos. Por isso, unindo entrevistas oficiais a outros comentários e entrevistas diversos, compilamos o melhor de Coringa com o objetivo de te fazer apreciar ainda mais o filme – ou te deixar com vontade de assisti-lo pela primeira vez.
História original
Mesmo cercado de controvérsias ao tratar sobre violência, o filme “não é uma declaração sobre o mundo de hoje“, mas fala sobre como alguém é impactado ao ponto de se tornar o Coringa. O plano inicial não era o filme contar a história de como o protagonista foi parar em um caldeirão cheio de ácido (como referência ao quadrinho Piada Mortal), e sim algo mais calcado na realidade. Por isso, durante o processo da criação desta versão o foco da produção foi humanizá-lo. Ou seja, eles criaram o personagem do zero. Não foi adaptado de nenhum alter ego nem outra versão do Coringa. É como se fosse uma realidade alternativa – o que não deixa de ser uma alternativa para criação do Batman, também. Com a ideia bem definida, Todd ligou para Bradley Cooper (produtor do filme) falando que tinha uma ideia para uma historia alternativa do personagem da DC, para o que Bradley afirmou ser algo “atrevido”. “Por que ele faria isso, por que riria disso, por que colocaria ou não maquiagem” são questionamentos que viraram essenciais ao esqueleto do filme, como explica o diretor, que teve melhores ideias de como construir seu Coringa após estudar sobre narcisismo e ego.
“18 trilhões” de versões do mesmo filme
O processo de edição foi “o sonho de todo editor“, como Bradley afirma orgulhosamente. Por isso, para o “azar” deles, a pós-produção demorou mais do que gostariam de admitir. Há uma cena que se passa no trabalho, por exemplo, onde ele fica frustrado e soca um relógio até quebrá-lo. A ação violenta foi uma surpresa a todos os envolvidos por simplesmente não ser roteirizada. Todd disse haver “18 trilhões” de versões do filme somente baseado nas mudanças sutis que ele fazia ao regravar cada cena. Gravar o filme dessa forma, para ele, “parecia ser a única forma, justamente por estarmos lidando com um personagem tão errático que não tem certeza do que vai fazer“. Na imagem acima, vemos as diversas entradas da persona adotada por Arthur ao ser convidado para participar do programa de Murray Franklin. Quem assistiu ao longa sabe da tensão que seria resultado disso, então toda e qualquer espontaneidade na cena introdutória acabou fazendo toda a diferença.
Casting perfeito
Este Coringa não foi apenas perfeito para Joaquin Phoenix, mas literalmente criado pensando no ator. Anos antes de o filme ser rodado, o diretor mandou um desenho do Coringa (como esboço) para Bradley e ele disse “parecer justamente com o Joaquin Phoenix“, que é algo que o próprio Todd não nega e insistiu ao escalá-lo. De início, Joaquin teve muitas perguntas a Todd e sabia que seria um desafio interpretar a versão de alguém tão conhecido que, para piorar as coisas, havia sido bastante criticado em sua última personificação (de Jared Leto). Há algumas semanas, ao receber o SAG Awards por sua atuação, Joaquin relembra brevemente a versão de Heath Ledger ao dizer que só venceu por “estar nos ombros” de seu “ator favorito“. Heath ganhou um Oscar póstumo por sua atuação em Batman: O Cavaleiro das Trevas, filme de 2008, que só ajudou a elevar Coringa ao patamar que conhecemos hoje. Joaquin tem sido reconhecido por sua atuação impecável tanto pela crítica nacional/internacional como pelos principais prêmios: até agora, já levou para casa um Globo de Ouro, um BAFTA e um Critics’ Choice, sendo indicado para o Oscar deste ano.
Bom e “velho” Coringa
Para Todd “nada ajuda tanto [os atores] como conhecer o guarda-roupa“. Mesmo ao entrar no apartamento de Arthur, Joaquin não sentiu o peso real da atuação. A responsabilidade e o personagem só surgiram em sua essência ao vestir as roupas. “Colocar essa pele, por assim dizer, ajuda atores a dar este último passo“, reforça o diretor. Mark Bridges, designer de vestuário, disse que Arthur foi formulado após eles misturarem o visual de um jovem com um vago traço de idoso. Já o visual do Coringa foi uma tentativa de equilibrar diferenças o suficiente para ser único sem tirar o espírito tradicional da coisa – que já cansamos de ver em quadrinhos e outras representações cinematográficas. Fato curioso: o colete e a camisa que ele veste no clube de comédia é o mesmo tipo que ele veste como Coringa. A produção só mudou o tom do material “na esperança que ninguém note“, mas é a mesma coisa. Tanto antes como depois da “transformação” o visual acabou sendo 100% inspirado em trajes dos anos 1970, com atenção a sempre ser verticalizado, como o magrelo das HQs.
Cidade viva
Na tentativa de criar uma atmosfera ainda mais única, outra atenção aos detalhes é bem representada na própria cidade. Ela é como um personagem, que está tomado pelo caos – e você pode quase senti-la respirar. Para ajudar nisso, tentaram relacionar o novo ambiente como sendo uma “Nova York de Gotham“, criando até um mapa que pode ser visto no metrô (em cenas diversas ao longo do filme). Mark Friedberg, designer de produção, estabeleceu que haveria uma distinção clara entre os bairros. Esse contraste pode ser visto tanto na iluminação como nas cores de cada take. O trabalho de Arthur está do lado oposto ao local onde ele vai para se divertir (clube de comédia) que, por consequência, possui uma cara diferente do bairro onde está o hospital, e assim por diante. Foi necessário mostrar de maneira implícita ao público o que era o bairro dele e o que era a região periférica, para que o comportamento do próprio Coringa casasse melhor com cada ambiente. Houve até um design pensado em como e quanto de lixo estaria espalhado: bairros mais ricos possuem lixo diferente dos de bairros de moradores comuns, que são ligeiramente menos organizados do que os centros municipais.
Locações incomparáveis
Mesmo que não seja oficializado em nenhum momento no filme, na cabeça de Todd tudo se passou em um local e ano específicos: Nova York, em 1981. Pela memória dele próprio, que na época tinha apenas 11 anos de idade, esse contexto ditou toda a atmosfera que vimos nas telonas. Para ter essa época revivida em pleno 2018, as locações reais foram os burgos de Manhattan, Bronx, Brooklyn (todos em Nova York) e a cidade de Newark (Nova Jersey). A escolha desta segunda cidade é devido ao fato de Newark ainda ter uma arquitetura similar ao que era a antiga Nova York, tanto é que a transição é imperceptível ao longo do filme. Um exemplo notável é o abandonado Paramount Theater, de Newark, que teve sua fachada restaurada só para as gravações. O apartamento de Arthur foi um ponto de partida que mereceu atenção redobrada. A ideia inicial de sua localização, porém, era em uma área muito plana para o que posteriormente foi decidido ser “mais verticalizado”. Todd acreditava que o público precisava ver Coringa passar por viadutos, becos estreitos, atravessar túneis e subir escadas. Tudo isso só foi feito para confundir a cabeça de quem estiver assistindo, para que você perca o norte e entre na fantasiosa Gotham. Uma inspiração clara, tanto de temas como de visual, são os filmes do diretor Martin Scorsese, Taxi Driver e O Rei da Comédia, ambos dos anos 1970/80 que estrelam Robert De Niro.
Quase tudo é real
Efeitos visuais são praticamente obrigatórios ao elaborar cenários baseados no mundo real. E é aquela velha história da sétima arte: os melhores visuais recriados digitalmente são aqueles que você não percebe. Esse foi um enorme desafio para os designers de produção, já que ao filmar algo na Nova York real, por exemplo, precisavam tirar tudo o que era distinguível da cidade clássica (principalmente a skyline). Do lado oposto, vemos o que foi adicionado para criar toda a atmosfera, como no gif destacado acima. Prédios mais baixos cresceram e vemos também uma extensão de detalhes mais próximo do ponto de fuga. Edwin Rivera, supervisor de efeitos visuais, brinca que há várias situações do tipo, onde temos “o cenário que você sempre sente, mas nunca olha diretamente“. Para a felicidade dos atores, Todd queria dar o máximo de material palpável para os atores trabalharem – o que chamam de “efeitos práticos” – ou seja, muita coisa precisou ser construída de verdade. A combinação das locações únicas com aplicação de ambos os efeitos (visuais e práticos) culminou em uma consistência de riqueza aos detalhes que, com certeza, uma parcela pequena do público nota ao ver Coringa pela primeira vez.
O Método
Com o passar do tempo, o diretor começou a ficar preocupado com a dieta de Joaquin, chegando a questionar “quando você vai perder peso?” em certo ponto, para que o ator respondeu algo como “não se preocupe, eu só vou parar de comer”. Não é como se o ator estivesse fora de forma (reforça o diretor), porém, o personagem deveria ser extremamente esquelético, o que justifica a leve pressão da equipe de produção. Dito e feito: entre os meses de junho e agosto de 2018, a dieta de Joaquin foi uma maçã por dia. Ele perdeu 22 kg entre o primeiro encontro com o elenco e a leitura coletiva do roteiro (ou seja, poucos dias, o suficiente para pegar todos de surpresa). A imersão no personagem pode ter começado pouco antes, mas ela se manteve ao longo das gravações. O processo foi uma surpresa até para Joaquin, que achou importante manter a imprevisibilidade do personagem. Na visão de Todd, “foi espontâneo […] o que mais fazia sentido para ele era isso, algo que não podia ser pensado com antecedência, e sim decidido no momento“. Fato é que nunca chegaram a ensaiar o personagem, o diretor só conversou a respeito da história e sobre o Coringa em individual, nunca delimitou “como” o ator deveria representá-lo. Atores chamam este mergulho no personagem de “method acting” ou somente “O Método”, que existe (quase) desde a criação do cinema como conhecemos hoje. Heath Ledger, o Coringa do filme de Christopher Nolan, é um dos exemplos mais recentes e impactantes da transformação de um ator em um personagem. Basicamente, é fazer o que for preciso para o bem de um papel. Heath se isolou em um apartamento por um mês, praticando sua risada, anotando tudo em um caderno e aperfeiçoando a criação de sua persona, ignorando qualquer um que não se referisse a ele como “Coringa” em set – mesmo que não estivesse em cena. Outro exemplo (por coincidência, também já citado por aqui) é Robert De Niro, que se transformou em Travis Bickle ao fazer Taxi Driver, tendo habilitação para ser motorista de táxi e trabalhando em turnos de até 14 horas por dia. O “bico” acabou criando uma rotina e De Niro levava passageiros ao redor de Nova York nos intervalos das gravações do filme – ele até perdeu 15 kg nesse processo. Pegando estes atores como referência, é fácil saber de onde Joaquin se inspirou.
Chefe versátil
Um diretor de comédia que deu certo ao realizar um filme de história em quadrinhos, em uma década de sucesso da concorrência (Marvel), onde o público deve simpatizar com um dos maiores vilões de todos os tempos. É nesse contexto que temos Todd Phillips, diretor da trilogia Se Beber, Não Case!, Caindo na Estrada e Um Parto de Viagem, responsável por guiar Coringa. O resultado todos sabem: o filme foi o R-Rated (classificação para maiores) mais rentável da história, provando que Todd se dá bem com ao trabalhar com ambos os extremos do espectro cinematográfico. Em uma entrevista, Todd comenta que a responsabilidade foi intensificada graças ao fato de “filme de quadrinhos agora possui um gênero próprio“, que era bastante diferente na época de sua juventude. Seu reforço maior foi saber o recorte: Coringa é um “estudo íntimo de um personagem” e não um compilado de efeitos visuais.
Dupla infalível
Sucesso das duas mentes (Todd e Joaquin) mereceu ser citado à parte aqui nesta lista, mas é justamente a união e a boa conversa entre ambos que resultou na impecável representação. Eles sentiram o mesmo medo de trabalhar com o personagem, que foi tantas vezes interpretado e adaptado ao longo dos anos. O diretor, por exemplo, falou com toda tranquilidade que “ainda não havia uma versão ruim” do personagem, e ele não queria ser o primeiro a quebrar a tradição. Os dois conversaram muito sobre os mínimos detalhes, em particular, até a confiança ser mútua e o projeto caminhar propriamente. Na noite anterior à gravação de uma cena, eles sentavam-se no trailer e reescreviam parte das cenas – vez ou outra, até mesmo Zazie Beetz (que interpreta o par romântico de Arthur) virava a noite elaborando o roteiro com eles. Zazie nunca tinha trabalhado com alguém com tamanha abertura e flexibilidade para mudar a história conforme necessário, e Joaquin diz que Todd vinha com “muitas ideias boas até no momento da cena“. Se somarmos a dupla infalível às múltiplas versões de cada situação filmada, temos a fórmula do sucesso.
Trilha única
A trilha sonora foi composta por Hildur Guðnadóttir, violoncelista islandesa que tinha trabalhado em poucos filmes de sucesso (Sicário: Dia do Soldado, de 2018, é o exemplo mais popular), mas recentemente foi vencedora de um Grammy por seu trabalho na série Chernobyl. Hildur começou sua composição logo após ler o roteiro, o que só prova o impacto de uma escrita bem feita. Ela sentou-se por algumas horas com o violoncelo, sem tantas ideias e, ao praticar uma outra melodia, sua “brincadeira” acabou virando o tema principal. O trabalho minimalista (predominância de um único instrumento) é o que mais merece destaque nessa lista. A composição Bathroom Scene, ou “Dança no Banheiro”, é a parte mais memorável do filme. “É o sentimento de algo clicar, porque o som se conectou ao que eu senti ao ler o roteiro“, ela explica ao ter a ideia. A compositora teve sua inspiração, segurou o fôlego e já gravou para enviar à equipe. Bradley Cooper diz que a trilha é parte essencial do filme, não apenas um complemento para os ouvidos mais atentos. Graças a isso, pelo som estar pronto antes das imagens, as gravações foram extremamente impactadas, como discutiremos a seguir.
Poesia (dançada) nas telonas
O momento que marca a transição de Arthur para Coringa é a cena da dança no banheiro. Originalmente, ela foi escrita com o intuito de Arthur se desfazer da arma, que agora seria evidência de um crime. Todd e Joaquin foram ao tal banheiro e se perguntaram se essa seria a ação certa. “Arthur se importaria o suficiente ao ponto de se desesperar? Ele teria visto isso em um filme? Por que se sujeitaria a isso?” foram alguns dos argumentos levantados. Após ficarem parados em pé por “cerca de uma hora”, por fim, decidiram mudar. “O momento parecia ser a emergência do Coringa“, explica o ator ao concluir o que aquilo significaria ao personagem. Ele visualizava uma dança, porém ainda não sabia exatamente qual estilo. Deveria ser um movimento mínimo, sem parecer coreografado demais. Por feliz coincidência, Hildur havia enviado a composição de violoncelo a Todd na noite anterior à gravação. Ele não parou de ouvir, o que só significou um grande sinal de aprovação. No set ele pegou o celular, tocou a música, Joaquin gostou e começou a dançar. Foi o bastante para rodarem. Sem nenhum ajuste, nem conversa, eles só filmaram. “Há música nele“, reconhece o diretor. O jeito que ele anda na rua, que trabalha girando a placa, como ele abre ou segura a porta do elevador, é uma coreografia inconsciente. Na cena do banheiro é a primeira vez que todos podem ver essa dança ser mais explícita. Michael Arnold foi o coreógrafo responsável pela famosa cena da escada, que usou como referência a apresentação de The Old Soft Shoe por Ray Bolger em um programa de TV. O vídeo ficou preso na mente de Joaquin e foi sua maior inspiração. Mal ele sabia que isso, além de se tornar um dos maiores memes de 2019, seria um momento histórico de um filme que arrecadou nada menos que 1 bilhão de dólares. Conta para a gente: qual o momento mais marcante de Coringa?